Clarice Lispector é uma escritora formidável. Talvez a
melhor da sua geração. Escreveu textos de vários gêneros, mas ficou conhecida
pelas suas produções introspectivas, cujo propósito é fazer com que os leitores
afastem-se das crises sociais e mergulhem-se nas crises individuais, na sua consciência
e na sua intimidade.
TRECHO DO LIVRO A HORA DA ESTRELA
Neste trecho ela descreve algumas atitudes e alguns
comportamentos de Macabéa, personagem principal do livro A Hora da Estrela. A narrativa assusta, é fria , mas apresenta o questionamento do ser, o estar no mundo, o
intimismo, a pesquisa do ser humano.
... dormia de combinação de brim, com manchas bastante
suspeitas de sangue pálido (...) Dormia de boca aberta por causa do nariz
entupido.
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha
de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho
distraidamente examinou as manchas do rosto. Em Alagoas chamavam-se 'panos',
diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco
e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda era um pouco
encardida, pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia
de combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro
era morrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo de
ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas
tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na
rua, ela era café frio.
Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela
coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu
autor, a amo. Sofro por ela.
Então - ali deitada - teve uma úmida felicidade suprema,
pois ela nascera para o abraço da morte. (...)